agosto 19, 2014

'Meditação Sobre a Lua'

Aldous Huxley tem um texto criticando as filosofias excludentes que afirmam que uma coisa são apenas uma coisa e não outra, sem considerar a multiplicidade do ser e suas mudanças. Ele explica isso com o exemplo da lua, de uma forma mitopoética permeada de lógica e filosofia - a lua não é só uma pedra, mas também uma deusa. Sua luz numinosa se lança do céu sobre nós. Segue a tradução do que escreve Huxley: 



MEDITAÇÃO SOBRE A LUA 
por Aldous Huxley (1931), tradução da Álex (2014)

Materialismo e mentalismo - as filosofias do 'nada além.' O quão extremamente familiar nos tornamos com aquele 'nada além de espaço, tempo, matéria e movimento', que 'nada além de sexo', que 'nada além de economia'! E o não menos ignorante 'nada além de espírito', 'nada além da consciência', 'nada além de psicologia' - o quão tedioso e cansativo eles também são!O 'nada além' é tão maligno quanto idiota. Falta generosidade. Chega disso. É hora de dizer novamente, com o primitivo senso comum (mas por razões melhores) , 'não só, mas também'.

Do lado de fora da minha janela, a noite está se esforçando para acordar; na luz da lua, o jardim escurecido sonha tão vividamente com suas cores perdidas que as rosas negras são quase carmim, as árvores permanecem em expectativa no limiar de um verde vívido. O parapeito do terraço branco e límpido brilha contra o céu azul-escuro. (O oasis jaz ali embaixo e, além da última das palmeiras, é aquilo o deserto?) Os muros brancos da casa friamente reverberam a radiação lunar. (Devo me virar para olhar as dolomitas se erguendo nuas para fora das longas ladeiras de neve?) A lua está cheia. E não só cheia, mas também linda. E não só linda, mas também...

Sócrates foi acusado por seus inimigos de ter afirmado, hereticamente, que a lua era uma pedra. Ele negou a acusação. Todos os homens, disse ele, sabiam que a lua é uma deusa, e ele concordava com todos os homens. Como resposta à filosofia materialista do 'nada além', sua réplica foi sensível e até científica. Mais sensível e científica, por exemplo, que a réplica inventada por D. H. Lawrence em seu estranho livro, tão verdadeira em sua substância psicológica, tão absurda, muito frequentemente, em sua forma pseudo-científica, Fantasia do Inconsciente. 'A lua', escreve Lawrence 'certamente não é um nevoso mundo gélido, como se o nosso mundo tivesse ficado frio. Baboseira. Ela é um globo de substância dinâmica, como rádio ou fósforo, coagulada sobre um vívido polo de energia'. A falha nessa afirmação é que ela se revela demonstrativamente falsa. A lua certamente não é feita de rádio ou fósforo. A lua é, materialmente, 'uma pedra'. Lawrence estava irritado (e com razão) com os filósofos do nada-além que insistiam que a lua era apenas uma pedra. Ele sabia que era algo mais; ele tinha a certeza empírica de seu profundo significado e importância. Mas ele tentou explicar esse fato empiricamente estabelecido com os termos errados, em termos de matéria e não de espírito. Dizer que a lua é feita de rádio é bobagem. Mas dizer, como Sócrates, que ela é feita de algo divino é bastante acurado. Pois não há nada, claro, que impeça a lua de ser tanto uma pedra quanto uma deusa. A evidência para sua mineralidade pode ser encontrada em qualquer enciclopédia infantil. É uma convicção absoluta. Não menos convincente, porém, é a evidência para a divindade da lua. Ela pode ser extraída de nossas próprias experiências, dos escritos dos poetas, e, fragmentalmente, até de certos livros-textos de fisiologia e medicina.

Mas o que é essa 'divindade'? Como devemos definir um 'deus'? Expressado em termos psicológicos (que são primários - sem nada por trás), um deus é algo que nos dá a peculiar espécie de sentimento que o Professor Otto chamou de 'numinoso' (do latim 'numen', um ser sobrenatural). Sentimentos numinosos são a coisa divina original, da qual a mente que elabora teorias extrai os deuses individualizados dos panteões, os vários atributos do Uno. Uma vez formulada, uma teoria evoca, por sua vez, sentimentos numinosos. Portanto, o terror dos homens em face do universo enigmamente perigoso os leva a postular a existência de deuses irritados; e, mais tarde, pensar sobre esses deuses irritados os fazia sentir terror, mesmo quando o universo não lhes dava qualquer motivo para alarde no momento. Emoção, racionalização, emoção - o processo é circular e contínuo. A vida religiosa do homem trabalha no princípio de um sistema de água quente.

A lua é uma pedra; mas é uma pedra altamente numinosa. Ou, para ser mais preciso, é uma pedra sobre a qual e por causa da qual homens e mulheres têm sentimentos numinosos. Portanto, há um suave luar que pode nos dar uma paz que fica além da nossa compreensão. Há um luar que inspira uma espécie de assombro. Há um frio e austero luar que conta à alma de sua solidão e desesperado isolamento, seu significado ou sua falta de clareza. Há um liar amoroso instigando a amar - a amar não só um indivíduo, mas às vezes até o universo inteiro. Mas a lua brilha no corpo assim como dentro da mente, através das janelas dos olhos. Ela afeta a alma diretamente; mas pode afetá-la também por obscuros e sinuosos caminhos - através do sangue. Metade da raça humana vive em manifesta obediência ao ritmo lunar; e há evidências que demonstram que o fisiológico e consequentemente a vida espiritual, não apenas de mulheres, mas também de homens, misteriosamente mingua e cresce com as mudanças da lua. Há alegrias irracionais, tristezas inexplicáveis, risos e remorsos sem causa aparente. Suas repentinas e fantásticas alternações constituem o clima comum de nossas mentes. Esses humores - dos quais os mais gravemente numinosos podem ser hipostasiadas como deuses, os mais leves, se desejarmos, como duendes e fadas - são os filhos do samgue e dos fluidos. Mas o sangue e os fluidos obedecem, entre muitos outros mestres, a mutável lua. Tocando a alma diretamente através dos olhos e, indiretamente, junto aos canais escuros do sangue, a lua é duplamente uma divindade. Até os cachorros e lobos, a julgar pelo menos por seus uivos noturnos, parecem sentir, de alguma obscura maneira bestial, uma espécie de numinosa emoção com a lua cheia. Ártemis, a deusa das coisas selvagens, é identificada em mitologia posterior com Selene.

Mesmo se pensarmos na lua como apenas uma pedra, devemos achar sua própria mineralidade como potencialmente um numen. Uma pedra que ficou fria. Uma pedra sem ar e sem água e a imagem profética de nossa própria terra quando, a alguns milhões de anos de agora, o senescente sol tiver perdido seu atual poder de proteção... E por aí vai. Esta passagem poderia facilmente ser prolongada - um Estudo em Púrpura. Mas me abstenho. Deixo cada leitor pousar o quanto da cor retórica real ele achar de seu gosto. De qualquer modo, púrpura ou não púrpura, a pedra é pedregosa. Você não consegue pensar nisso por muito tempo sem se ver invadido por um ou outro de vários sentimentos essencialmente numinosos. Esses semtimentos pertencem a um ou outro de dois grupos contrastantes e complementares. O nome da primeira família é Sentimentos de Insignificância Humana, o nome da segunda é Sentimentos de Grandeza Humana. Ao meditar na abandonada pedra flutuando lá no abismo, você pode se sentir mais numinosamente um verme, abjeto e fútil em frente a imensidões completamente incompreensíveis. "O silêncio desses espaços infinitos me amedrontam". 

Você pode se sentir como Pascal se sentiu. Ou, alternativamente, se sentir como M. Paul Valery disse que se sentia: "O silêncio desses espaços infinitos não me amedronta". Pois o espetáculo dessa pedregosa e astronômica lua não necessariamente precisa fazer você se sentir um verme. Ele pode, ao contrário, fazer você se rejubilar exultantemente em sua condição humana. Lá flutua a pedra, o símbolo mais próximo e mais familiar de todos os horrores astronômicos; mas os astrônomos que descobriram esses horrores de espaço e tempo eram homens. O universo lança um desafio ao espírito humano; a despeito de sua insignificância e abjeção, o homem aceita. A pedra nos fita da escuridão sem fim, um 'memento mori' [lembrança da mortalidade]. Mas o fato de sabermos se tratar de um 'momento mori' justifica sentirmos um certo orgulho humano. Temos direito a nossos humores de sóbria exultação.

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